A barragem está rompida. As águas
correm livres pela encosta, procurando o mar. Chove desde três dias, crescente
e espuma nos rios, galhos, amarilhos, a vida louca na corrente em assovio. O
rio que escapou da caixa beija a várzea inundada e barranqueira, leva o meu
sonho, lava a minha alma. A estrada agora é uma balsa na corrente em desvario.
As águas correm, insultam a barragem
e rumam ao mar. Quem é capaz de lhes impor? O torpor do coração lança-se à
correria das nascentes, transbordante, inconstante, rolando serra abaixo. Eu
tento segurar o golpe absurdo das águas, o peso do mundo, a massacrante pressão
da minha brutal incongruência.
A barragem está rompida, desde a
nascente. E como se faz o rio voltar ao leito uma vez desfeita a inundação? O
leito será outro, outros serão os peixes e os pesqueiros, outras vidas terão
nascido, outros destinos escritos. Feneço diante do holocausto dos meus
próprios pés, recobertos pelo barro seco, areado, arrancado das encostas da
barranca.
As águas correm enquanto eu estou
parado, abismado, reflexivo. Eu vejo o futuro e o que plantei florescer num
chão de vidro, enquanto pratico velhos hábitos, velhos erros, o infiel e o involuntário
ser. Tento entender os meus impulsos e o que fazer de mim, e assim, concertar o
espelho do meu interior.
Eu sigo em frente. O mundo queima
numa fogueira de vaidades.