terça-feira, 31 de julho de 2012

Eu leio Kafka, mas a metamorfose ocorre em mim. Num lugar assim como o que vivo eu sobrevivo de gotas de orvalho, e o que guardo foi apenas o que nunca vi no espelho; Eu te protejo dos meus medos, e projeto uma vida indefinida que só o destino sabe qual. Sou uma nau portuguesa navegando em mares desconhecidos em busca da terra prometida. Tu não sabes de mim mais do que eu te mostro, e eu sou vasto como a imensidão dos oceanos; Um poço fundo que mergulha numa geleira de águas tormentosas, embora, por fora, tudo seja calmo e transparente. Eu leio Kafka, mas a metamorfose ocorre em mim.



Longe do fim tudo é um recomeço, mas eu te vejo nesta estrada. O céu vermelho no horizonte aponta os rumos para os meus poemas, e lá está tudo o que eu preciso: a cor invisível das manhãs. E eu me transformo a cada instante, me transmudo em cada volta, e em cada movimento eu sou um novo sentimento. A explosão das cores vai mostrar-te o que eu serei, e tu, se quiseres, vais então me compreender. Chegará o dia em que o tempo muda tudo, e o mundo que se conheçe amanhecerá com os pés pela cabeça, pois que eu sou um poema em xeque-mate: se a rima for imperfeita, será o meu fim.

Eu leio Kafka, mas a metamorfose ocorre em mim.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Um poema não escrito vive em mim, e eu vivo às voltas para encontrar as suas formas. Quero transpô-lo para o papel, mas ele é como o mel que adoça a boca: promete e se esvai, provoca e se ausenta. Eu intento com ele os meus propósitos, e de todos eles, ele é o mais belo. Combinamos rimas e roubos, arroubos e rompantes, mas sou só eu que me apresento. Ele sempre me deixa na mão.

Há anos que eu o escrevo, transcrevendo cada imagem que ele dita. A bendita força que ele traz é o que me sustenta; A folha de outono que ele derruba é o que me ergue; E o vinho que ele bebe é o que me faz lúcido e perspicaz, sagaz ao ponto de perceber a sua indiferença. Com palavras e falácias ele me tenta, e eu, como um tolo apaixonado, me envolvo em cada uma de suas tramas.



Eu já desisti de descrevê-lo, mas nunca de tentar escrevê-lo. Não tremo mais diante de seus fantasmas, nem me assusto com as dissonantes que ele causa. E sou feliz em tê-lo. Em abrigá-lo em mim e em minha alma, que vivêmos em simbiose pela causa da poesia. Mas agora, depois que eu compartilhei com ele um pouco da tua alma, ele veio a mim e se mostrou: não a mim, mas para ti. E no sonho era ele quem falava, que ditava as palavras que agora estão aqui. Agora eu sei que era ele, pois ele veio a mim como um espelho.

Este poema não escrito vive em mim. E, em sua imagem, do sonho que tive em "Deja-vi", eu agora o escrevo para ti.

domingo, 29 de julho de 2012

Muitas coisas eu não gosto em ti, amada. Muitas coisas eu relevo em meus olhos e em meu coração. Mas não me peças a razão para entender o que eu não entendo: a tua desoblíqua obstrução de sí. Eu não compreendo isso. Eu não entendo outras coisas também, mas destas eu já te falei do que me dói. O amor corrói o tempo em que ficamos sós, e nestes momentos é que as sombras do passado acordam. E eu não gosto de brigar, porque brigar é quase que uma faxina solitária.

Mas muitas coisas eu gosto em ti, amada: o brilho dos olhos, o olhar sobre o cimento, a música que capturas do vento. E eu escrevo os meus poemas - todos eles - para ti. Tu é que não os vês. Tu é que não os lês. Mesmo assim eu te retrato neles. Somente um cego não percebe o óbvio: tu não vês? Muitas coisas sou eu que não sei de ti. Outras até sei, mas nelas desacredito. Acredito que um dia nós iremos nos entender, mas até lá eu serei um Dom Quixote pelos campos. Meus moinhos são maiores do que o vento, e Sancho Pança não existe nesta história. A cegueira que me abate apaga os olhos, e a memória apaga o que de bom nós temos. Mas tu também não intenta em me apontar. Olha: eu te estendo a mão. Me guia nos caminhos desta escuridão.

Quando a alma vive sem luz, é só o amor quem nos conduz. 

sábado, 28 de julho de 2012

Para você é este poema. O meu presente. Para ti que foi, que és e que serás. A cor da manhã envolve o teu sorriso, e tudo é parte do impreciso movimento desta vida. Eu escrevo para ti neste dia, nesta madrugada fria em que minha alma se perdeu de mim. No fim de tudo, tudo é um eterno recomeço, e eu já não peço de volta o que se foi. Mas escrevo para descrever teu movimento: a dança que é, afinal, o que nos restou. A dança do vento, a dança do ventre, daquilo o que apenas importou: o amor.


Para você é este poema. Tardio. Oculto. Esbelto. Analfabeto em seus contrastes porque diz o que quer ser, mas sem saber quem é. Pois foi assim que José de Arimatéia recebeu seu esplendor; E a dor que eu sinto é algo como o Gris: ninguém a vê, ninguém a viu. E eu penso que ela de mim já se escondeu.

Para você é este poema. Tardio. Esbelto. Desproposital. Um elo atemporal que se reflete em movimento, como um rio teso que ruma com destino ao mar. Se estar assim é um desatino, eu já não sei qual é a razão. E só eu sei o que perdi.

Para você é este poema. Desafeito em seus versos. Destronado. Carregado de mortal beleza. Abra a sua caixa de facetas multicores: esta foi a única maneira que eu encontrei de te mandar este buquê de flores.



      

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tu me falas de um sonho, e eu me vejo nele. É estranho. É mais estranho porque nós nunca nos falamos, embora os nossos olhares sejam cúmplices de um luar noturno. Tudo é ferrolho e picumã. Vermelho como o sol que nasce de uma manhã de primavera. Como um caminho que irrompe à terra envolto em brumas. Tu vens por ele, mas não é a ti que eu procuro. Eu escuto o luto de uma voz antiga, de uma avó charrua. E o vermelho desta voz me incendeia, enredando-me numa teia de mistérios e de inquietações. É muito estranho, mais ainda porque nós nunca nos falamos. Mas a voz charrua sussura aos meus ouvidos: conta-me segredos, me fala da alma de um tempo, o tempo ancestral. Eu já estive lá. Você também. Somos peregrinos que já se cruzaram em seus caminhos. Somos o improviso no verso de um poema campesino, cúmplices de algo que ainda nem mesmo compreendemos. Um rítmo flamenco enfeita a prosa de dois loucos ao duo de castanholas que desafiam o mundo em caravelas. Tu me falas de um sonho, e eu me vejo nele.

Sim, pois eu acredito em sonhos. Acredito que eles nos falam da alma; Que eles nos mostram o que somos e o que queremos. Misteriosa é a alma humana e os seus desígnios, misteriosos são os caminhos pelos quais andamos; É engraçado: eu tenho falado com uma bugra charrua nestes dias, e há muitas vidas. Ela me fala de um tempo antigo, de um tempo ancestral; De um olhar perdido que ficou pelos retratos, e de uma história que eu ainda não consigo formular. Mas eu estive lá, e você também. Pois nós somos cúmplices de um poema não escrito.

Tu me falas de um sonho, e eu me lembro dele...

 







quinta-feira, 26 de julho de 2012

Por onde esteves, amada minha, quando eu precisei de ti? Por onde andou o teu coração que se esqueceu do meu? Eu tenho dito tanta coisa sem dizer-te nada, que a sofreguidão da noite chega a me assustar nas madrugadas. Eu escuto o sussurrar dos rios por entre as pedras do cerro, e o orvalho que escorre dos meus dedos é de dor e de saudade. A mocidade há muito que me deixou, e eu fiquei apenas com a desesperança. Nela a minha alma é uma incauta prisioneira, e eu quero que tu saibas o que eu sinto. Mas eu só sei te falar pelo silêncio. Ouve: é a minha alma que chama por ti, que te reclama. Por onde esteves, amada minha, quando eu precisei de ti?

Eu hoje vou beber vinho do porto. Sim, porque os meus olhos já se embebedaram no teu corpo, e o meu coração guardou de ti apenas o teu olhar noturno. E eu sinto a tua falta. E estou sozinho nesta cama larga e fria sem os teus carinhos sobre mim. Pois eu prefiro uma meia verdade a uma mentira. Um beijo frio e seco a uma noite de vigília. Tu não compreendes, não é mesmo? Então escuta os meus silêncios, aprende a conhecê-los, que eles falam mais de mim do que as palavras. E eu tenho dito tantas coisas sem dizer-te nada que a sofreguidão da noite chega a me assustar nas madrugadas.

Por onde andas, amada minha, quando eu mais preciso de ti?





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quarta-feira, 25 de julho de 2012

A lua está sem alma. Ela emprestou o seu sorriso aos teus lábios, e hoje tu estás triste. Eu olho a lua e me sinto culpado, pois eu não consigo te alegrar. Se me afogar num mar de tempestades te fizesse sorrir, nele então eu morreria. Tu não vês o que tu causa? Se estás triste, a lua não sorri. Ela perde a alma e a noite avança sobre a terra montada num corcel de sombras. Mas eu não te culpo, embora, por vezes, eu não te entenda. É que eu sou poeta: eu só entendo da lua.

Eu sei. Tu tens todo o direito de explodir como um sol numa tempestade magnética que leva todos ao redor. Tu tens o dever de dizer aos que te cercam que ouvir as mesmas coisas todo o dia às vezes cansa. Toda a fortaleza tem os seus pontos fracos, e mesmo um castelo de luz resplandescente guarda em sí algumas sombras. Tu não podia ser diferente. Mas me diz o que te aflige, se eu não vejo. Mostra-me os caminhos que eu não enxergo, que eu quero viver o eclípse de sombras que te assola, e te ajudar. Eu te estendo a mão: aceita. Não é hora de orgulho bobo ou de desfeita. A lua está sem alma no céu, e tu não vês a causa?
É porque tu és uma vertente de luz que está encoberta; Um cometa incandescente que caiu do céu e se enterrou na terra, mas que sabe que alí não é o seu lugar. Já é hora de acordar - doce menina - pôr na mala novos sonhos e lutar por eles; Brigar por eles; Sorrir para os que vierem; Dar adeus aos que se vão; A vida é calendário de dias que se sucedem em procissão, e por vezes somos nós que devemos virar a página. 

Olhe para a lua agora: ela emprestou o seu sorriso ao teu olhar. Mas basta que um sorriso apareça nos teus lábios para que o meu mundo seja salvo.